As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024 trouxeram à tona uma questão que, por vezes, fica em segundo plano diante da urgência em salvar vidas. Essa preocupação são os danos irreparáveis ao nosso patrimônio histórico, artístico, cultural e arquitetônico.
E quando falamos desse patrimônio aqui no sul, mergulhamos na rica história da imigração europeia que moldou nossa identidade. Os vales dos rios Sinos, Caí, Paranhana e Taquari abrigaram comunidades de imigrantes, principalmente alemães e italianos.
Neste mês de maio, quando se completa um ano da grande enchente, ainda são contabilizadas perdas que carregam consigo partes da nossa cultura.
É claro que, num primeiro momento, o foco principal foi o socorro às vítimas e a reconstrução das infraestruturas essenciais. Mas agora é hora de direcionar um olhar atento à recuperação do patrimônio cultural que as águas levaram ou danificaram.
Imagens: primeira a quarta, da esqueda para direita: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Última imagem: Sofia Vilella/Flickr
Cada objeto antigo, cada construção com suas peculiaridades, cada documento amarelado pelo tempo, conta uma parte da nossa história, e de nossos antepassados que vieram de longe e construíram este lugar com tanto suor e esperança.
As águas levam mais que objetos: atingindo a identidade cultural do RS
Não se engane, quando a água invade um museu ou derruba uma casa antiga, não são apenas objetos ou paredes que se perdem. É como se um pedacinho da nossa memória coletiva fosse arrastado pela correnteza.
São as histórias das famílias que se estabeleceram aqui, as tradições que trouxeram da Europa e que se misturaram com a cultura local, os saberes e fazeres que foram passados de geração para geração.
Perder esse patrimônio é perder um elo vital com o nosso passado, com quem nós somos.
Angelo Reinheimer: um símbolo em preservar o patrimônio da imigração no RS
O restaurador Angelo Reinheimer resgatou o gramofone Kosmophon nº 4 Elegant do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, em meio à inundação.
Aquele gramofone não era apenas um objeto antigo; era um portal para as músicas, as histórias e os momentos vividos por pessoas que construíram São Leopoldo.
O esforço de Angelo em salvar esse pedacinho da história nos lembra da nossa profunda conexão com o passado e da urgência em proteger esses testemunhos materiais, antes que se percam para sempre.
O Museu Histórico Visconde de São Leopoldo: uma vitória agridoce
O Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, fundado com a nobre missão de salvaguardar a memória da imigração alemã, enfrentou a fúria das águas com perdas relativamente pequenas, em sua vasta coleção de 10 mil itens.
A perda dolorosa do piano Schiedmayer: uma nota de tristeza
No entanto, a perda irreparável de um piano Schiedmayer de 1904 ecoa como uma nota dissonante nessa aparente vitória.
Aquele piano, com suas teclas que embalaram canções e histórias, agora silencia para sempre. É uma perda que vai além do valor material; é a perda de um pedaço da alma musical daquela época.
A decisão de expor os destroços do piano como um memorial da enchente é, ao mesmo tempo, dolorosa e admirável. É uma forma de reconhecer a perda, de não varrê-la para debaixo do tapete, mas também de manter viva a lembrança do que aconteceu.
Igrejinha e a luta pela memória alemã como patrimônio da imigração no RS
Em Igrejinha, a situação dos acervos históricos ligados à imigração alemã no estado do Rio Grande do Sul nos apresenta um cenário com nuances diferentes.
O museu local, graças a uma ação conjunta de diferentes órgãos governamentais e ao trabalho incansável de técnicos da UFSC, conseguiu salvar uma parte considerável de sua coleção. A inovadora técnica de congelamento de documentos em papel serviu como uma verdadeira arca de Noé da memória.
Essa criatividade e essa dedicação foram cruciais para preservar parte da nossa história escrita.
Contudo, a fúria do Rio Paranhana não poupou o arquivo histórico municipal de Igrejinha. A água derrubou paredes e arrastou consigo toda a documentação histórica relacionada à colonização alemã.
São registros de nascimento, casamento, óbito, documentos de terras, atas de reuniões das primeiras comunidades. Isto significou um golpe profundo na preservação da memória local, uma lacuna que dificilmente será preenchida.
Nova Petrópolis e o enxaimel: a arquitetura imigratória em risco
Em Nova Petrópolis, conhecida por sua forte identidade alemã, os deslizamentos de terra causaram danos significativos às emblemáticas edificações em técnica enxaimel.
Essas casas, com suas estruturas de madeira aparente e paredes de tijolo, são um legado arquitetônico vivo trazido pelos imigrantes alemães e representam um aspecto fundamental da identidade cultural da região.
A destruição ou dano de ao menos três das 148 casas catalogadas nessa técnica sublinha a vulnerabilidade desse patrimônio único diante das forças da natureza.
Casa em estilo enxaimel. Imagem: Canva
Muçum e a urna funerária indígena: a perda da história do RS
Em Muçum, a perda de uma urna funerária indígena com fragmentos de ossos na enchente nos lembra da amplitude do impacto sobre diversas formas de patrimônio cultural.
Aquela urna era um elo com os povos originários que habitavam estas terras muito antes da chegada dos imigrantes. Sua perda é um golpe na nossa compreensão da história ancestral da região.
Sedac: a importância da expertise em situações de crise
Em momentos de crise, o tempo é inimigo, e ter pessoas com o conhecimento técnico adequado para lidar com acervos históricos pode fazer toda a diferença entre a preservação e a perda.
A iniciativa da Secretaria da Cultura do Estado (Sedac) de enviar orientações aos municípios durante as enchentes de maio, visando a proteção dos acervos, demonstra um aprendizado valioso.
Essa ação proativa pode ter evitado perdas ainda maiores. É como receber um manual de instruções antes que o desastre aconteça, aumentando as chances de proteger o que é importante.
UNESCO no Rio Grande do Sul: avaliação e suporte à recuperação histórica
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) foi ao Rio Grande do Sul em julho do ano passado para avaliar os danos e oferecer assistência. O olhar de uma organização internacional pode trazer expertise e recursos para auxiliar na recuperação.
A principal dificuldade reside na complexidade dos danos, que muitas vezes exigem técnicas de restauração especializadas e caras, além da necessidade de um inventário detalhado das perdas para direcionar os esforços de forma eficaz.
A ausência de um levantamento completo das perdas por parte de autoridades e organismos internacionais demonstra a magnitude da tarefa que temos pela frente.
Um inventário abrangente do patrimônio histórico da imigração no Rio Grande do Sul é fundamental para entendermos a extensão dos danos e para planejarmos ações eficazes de recuperação e prevenção.
A essência da identidade cultural do RS em risco
A perda do patrimônio histórico da imigração no Rio Grande do Sul representa muito mais do que a destruição de objetos e edifícios: ela atinge a própria essência da nossa identidade cultural.
Preservar esses testemunhos do passado é fundamental para compreendermos a nossa trajetória como sociedade e para transmitirmos esse legado às futuras gerações. As crianças e os jovens precisam conhecer a história dos seus antepassados, as dificuldades que enfrentaram e as conquistas que alcançaram.
Esse conhecimento fortalece o senso de pertencimento e a identidade cultural. É como passar um bastão numa corrida, garantindo que a história continue sendo contada.
As enchentes deixaram marcas profundas no Rio Grande do Sul, mas a resiliência do nosso povo é notável. Assim como estamos reconstruindo casas e estradas, precisamos também reconstruir e proteger a nossa memória.
O patrimônio histórico da imigração é parte fundamental da nossa identidade e merece toda a nossa atenção e esforço. Que a tragédia sirva de aprendizado para valorizarmos e protegermos ainda mais o nosso legado cultural, garantindo que a voz do passado continue ecoando para as futuras gerações.
